A partir da próxima terça-feira o CCBB-DF vai exibir a mostra Poeta Visual, com trinta filmes daquele que é provavelmente o diretor de cinema mais importante do mundo na atualidade, Alexander Sokurov. Em uma época em que a cultura audiovisual parece submergir diante de avassaladora onda digital que assola o planeta, o cinema de Sokurov - cheio de técnicas que distorcem personagens e cenários, por meio da manipulação da luz, lentes e granulação de imagens - comprova que nem tudo está perdido.
A velocidade com que os recursos digitais vêm tomando a produção dos blockbusters afeta, com conseqüências imprevisíveis, o próprio estatuto da imagem forjado ao longo do primeiro século de existência do cinema: do outro lado da cidade, porém, a poesia resiste. Resiste, como no caso de Sokurov, porque ancorada numa vigorosa tradição poética, de construção milenar e posteriormente atualizada num dos períodos mais férteis de produção artística que se tem notícia, a primeira década da revolução comunista na antiga União Soviética.
Alexander Dovzhenko (1894-1956) é um dos pilares dessa tradição de que se alimenta Sokurov. Ao lado de Eisenstein, Pudovkin, Vertov e um grupo notável de artistas, os filmes de Dovzhenko lograram um feito único, um verdadeiro paradoxo: absorvendo a energia liberadora da revolução iniciada em 1917, foram aclamados, sobretudo na segunda metade da década de 20, como um dos exemplos mais pujantes da propaganda soviética e da centralidade da luta de classes na representação social. Ao mesmo tempo, subterraneamente, funcionaram como um poderoso panfleto da espiritualidade panteísta da Ucrânia, seu país de origem, com contornos perigosamente nacionalistas e por extensão anti-stalinistas.
Se entendermos Stalin como a designação de uma era política de absoluto conteúdo autoritário, exacerbada a partir de 1930, fica fácil ver a linha tênue por onde desembocou a obra do cineasta. Antes dessa escuridão, não obstante, Dovzhenko realizou seus filmes mais expressivos, a trilogia em que extravasou a veia poética que combinava uma profunda meditação sobre a metafísica da ortodoxia eslava e a emergência da nova ordem socialista: são eles Zvenigora e Arsenal, ambos de 1928, e Terra, de 1930.
Figura sacra
Uma combinação, sem dúvida, que provoca um forte efeito de estranhamento: basta imaginar uma composição cinematográfica inspirada nos clássicos ícones do código ortodoxo bizantino, ou seja, figuras sacras pintadas sobre madeira com um fundo sem perspectiva - só que, no lugar da figura sacra, aparece um operário potencialmente revolucionário. Dovzhenko, versado na cultura pictórica da tradição iconográfica, adaptou a "aura" religiosa dos ícones aos personagens emanados do materialismo dialético marxista prevalecente na visão estético-ideológica do partido.
Não apenas nos retratos em primeiro plano dos heróis, vilões e vítimas do processo histórico, mas também de objetos e da natureza. Circundados por um halo resultado de um sutil fora de foco, as imagens em primeiro plano - rostos, flores, objetos mecânicos - adquirem uma "significação corpórea", como definiu um crítico ucraniano, que atravessa a tradição bizantina e remete à sacralidade na representação pictórica na Europa e nos primórdios da renascença italiana.
Essas imagens parecem conter uma solidez auto-suficiente, quase que despertam uma sensação de toque no espectador. Cinema-poesia, por certo, que se articula com a premência do momento histórico da revolução socialista para produzir uma consciência da transição e superação históricas, sustentando ao mesmo tempo uma subjetividade fecunda e original. A fonte, enfim, a que se referiram cineastas como Tarkovski, Paradjanov e Sokurov.
Ao contrário de seus contemporâneos, em particular Serguei Eisenstein, Dovzhenko não enfatizava o papel da montagem cinematográfica como motor dialético de conscientização social. Mesmo assim, em alguns aspectos da montagem o ucraniano inovou: por exemplo, nos diálogos da abertura de Terra, em que os pontos de vista dos personagens não configuram um eixo previsível de montagem, introduzindo uma certa ambigüidade na narrativa, ou ainda na edição dinâmica de máquinas e processos industriais, que reproduzem a matriz visual do construtivismo nas artes plásticas, sobretudo a de Rodchenko.
Não obstante, a combinação inusitada de ambigUidade e progresso, esSe último metaforizado pelas imagens construtivistas, foi um dos fatores que terminou por criar problemas para Dovzhenko. Seus filmes agradavam a classe artística e os intelectuais mais arejados, mas acertavam em cheio no dirigismo burocrático redutor e boçal que se anunciava no partido comunista com a ascensão de Stalin. Com o último filme da trilogia, Terra, o diretor, além das habituais acusações de formalista e pró-nacionalismo ucraniano, viu-se às voltas com insinuações de que seria simpatizante dos kulaks, a classe de pequenos e médios proprietários rurais bem sucedidos que Stalin esmagou com seu projeto alucinado de coletivização da agricultura.
Revolta espontânea
A Ucrânia, vítima de ocupação cruel da Rússia czarista, teve com o novo regime milhões de pessoas executadas ou deportadas, na mesma época em que Terra estava sendo finalizado. A matança foi tanta que se instalou uma revolta espontânea, obrigando os dirigentes de Moscou a uma breve suspensão das medidas, suficiente, ironicamente, para que o filme fosse exibido nas cidades soviéticas.
Não vale à pena detalhar aqui as peripécias que Dovzhenko foi obrigado a fazer para continuar filmando na URSS, agora já na era sonora do cinema. Os acontecimentos que levaram à segunda grande guerra facilitaram um pouco as coisas, pela necessidade de incorporar o cinema no esforço nacional, mas a história da composição política dos cineastas soviéticos inovadores com o chamado "realismo socialista" é uma sucessão trágica de labirintos da censura e frustrações. Somente no caso de Terra existem pelo menos seis versões diferentes, resultado das mutilações sofridas pelo filme, que a despeito disso tudo fez ótima carreira internacional.
A indústria cinematográfica acabou também tragada pela espiral paranóica do período - o diretor da "Soyuzkino" soviética na década de 30, Boris Shumiatsky, que detestava montagem dialética, defendia a linearidade narrativa e se batia por um "cinema para milhões", foi perseguido por traição e fuzilado em 1938, a exemplo de tantos outros burocratas. A fase "heróica" do cinema soviético, como é conhecida pelos pesquisadores, já era, virou história.
Muito já se falou sobre o estilo de Dovzhenko de filmar seus personagens, colocando-os com o olhar dirigido à audiência como que para nos implicar em sua luta e sublinhar a unidade da família e da classe social. Algo dessa visualidade o cineasta foi buscar em David Griffith, o grande pioneiro do cinema norte-americano, especialmente no curta A corner in wheat, de 1909.
Essa essencialidade da mise-en-scène cinematográfica é um motivo recorrente na estética refinada de Alexander Sokurov, que começou a filmar ainda na era soviética. Seu último longa-metragem que chegou ao Brasil, Fausto, uma obra-prima, venceu o Festival de Veneza de 2012 e contou com financiamento estatal pessoalmente autorizado por Vladimir Putin. Agora, como antes - são famosos os palpites que Stalin dava sobre os filmes de seus conterrâneos - as relações entre o poder e o cinema continuam viscerais na velha Rússia.
João Lanari Bo é diplomata e professor de cinema da UnB
Links para alguns filmes de Oleksandr Dovzhenko:
«Zvenigora», 1928 (http://www.youtube.com/watch?v=pQ4HXgqEcqI&list=PLdopucnp99XQnRJAmlDuvyRicU8C-lgN1);
«Arsenal», 1928 (http://www.youtube.com/watch?v=iIq0UDHvqic);
«Terra», 1930, legendado em inglês (http://www.youtube.com/watch?v=fInaSOtpqE0);
«Щорс», 1939, legendado em espanhol (http://www.youtube.com/watch?v=4rqathZuC-E).
“Correio Braziliense”, 8 de junho de 2013,