“Os meus pais sempre me ensinaram a não abrir muito a boca. Eles me contavam muitas coisas sobre o que acontecia no regime soviético. Isso cresceu comigo, inclusive a revolta com a falta de liberdade”. O depoimento bem que poderia ser obtido em uma parte da longínqua Ucrânia. Mas pertence a Ludmila Szymanskyj, uma artista plástica de 77 anos que vive no Brasil, país que possui a maior comunidade ucraniana da América Latina e uma das cinco mais numerosas do mundo –são cerca de 500.000 compatriotas e descendentes. Um ícone dessa presença é Clarice Lispector (1920-1977), expoente da literatura brasileira e nascida Haia Pinkhasovna Lispector, em Tchetchelnik (centro-oeste). Seu romance de estreia, Perto do coração selvagem, foi uma de suas obras traduzidas para vários idiomas e que ganhou inúmeras edições no exterior.
Assim como muitos compatriotas, a artista plástica Szymanskyj conta histórias de superação, de dificuldades no histórico relacionamento com os russos e não esconde a apreensão atual com o destino de sua terra natal e de familiares. Em contato direto por telefone e internet com primos que ficaram na Ucrânia, a artista plástica também recorre a meios de comunicação locais digitais para acompanhar os desdobramentos da crise interna e do conflito com a Rússia.
Os relatos de dificuldades na economia e de incerteza política costumam ser breves, mas intensos. “Às vezes eles não se abrem muito e eu também não forço, porque entendo pelo que eles podem estar passando. Por mais que já tenham se ido vinte anos, as pessoas ainda têm medo da repressão”, acrescenta Ludmila, que mora em São Paulo. Ela faz referência à independência da Ucrânia conquistada em 1991, após o desmantelamento da União Soviética.
Nascida em Slaviansk, no leste ucraniano, ela conta que veio ao Brasil com 12 anos, em 1948, após ficar por quase três anos e meio em um campo de refugiados em Hannover, na Alemanha. A Segunda Guerra Mundial havia terminado em 1945 com a vitória dos aliados e a repressão religiosa e a movimentos nacionalistas pela União Soviética pesou na hora da escolha do Brasil como destino. “A Europa estava destruída. Nós estávamos famintos. Todos os adultos estavam preocupados e queríamos uma vida melhor. Aqui (no Brasil) todo mundo pode falar o que quiser.”
“Lá nunca tinha eleições e ninguém podia falar nada, porque senão alguém sempre denunciava”, reforça Maria Gawrintsuk, de 83 anos, ucraniana moradora de São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo. Costureira aposentada, ela afirma que o sogro, oriundo de Chernobil (norte da Ucrânia), chegou a ser preso por ajudar a criar um movimento contrário ao governo soviético. Ele escapou de ir para a região polar da Sibéria, onde havia trabalho forçado e de onde ninguém fugia ou mandava notícias, completa. Já os pais de Maria trabalhavam incansavelmente na lavoura, “sempre para o governo, nunca para o próprio sustento”, recorda.
Quando acabou a Segunda Guerra, ela e sua família já se encontravam na Alemanha, após terem fugido da União Soviética. Ficaram em uma zona sob os cuidados dos Estados Unidos. As opções, então, eram, além de ficar na Alemanha ou retornar para a Ucrânia, na época pertencente à União Soviética, os EUA, o Canadá, a Argentina e o Brasil. “Apareceram intérpretes dizendo para que não ficássemos com medo de seguir para o Brasil, e que não sentiríamos mais frio ou não usaríamos mais botas e chapéus.”
O traslado para o outro lado do Atlântico era feito de navio, e o desembarque ocorria no Rio de Janeiro. A viagem de Maria levou 14 dias em 1947, sem nenhuma parada no caminho. “Vomitávamos tudo o que saía da cozinha” da embarcação, diz. A aposentada ainda recorda, passados mais de 60 anos, o sabor de frutas tropicais frescas logo após a sua chegada, como a banana e o caqui, que, por nunca ter visto, acabou chamado de “tomate doce”. No navio, que conduzia aproximadamente 600 imigrantes, havia também poloneses, iugoslavos e russos, entre outras nacionalidades.
Foram oferecidos na chegada, ainda de acordo com Maria, um pequeno salário, uma pedra de sabão para lavar a roupa e um dicionário russo-português. “Logo depois disseram que precisaríamos buscar serviço e a maioria foi para o interior trabalhar nas lavouras”, conta. “Sempre achavam que as línguas russa e ucraniana eram iguais. Era nada. É como o castelhano da Argentina e o português. Você até entende algumas palavras, mas não é a mesma coisa. Quando eu estava na escola na Alemanha, os meninos estrangeiros de lá tiravam sarro porque não falávamos bem o russo”.
No Brasil, Maria e Ludmila começaram a namorar e se casaram com cidadãos também de origem ucraniana, construindo suas famílias e uma vida melhor no novo país com o apoio da comunidade. O marido de Ludmila, por exemplo, trabalhou como operário braçal, professor de alemão e encerrou a carreira como profissional de marketing. Com o nascimento dos filhos, elas se dedicaram a cuidar deles em casa –após desenvolverem atividades em confecções. “Meus filhos tinham lápis, caderno, até dentista havia na escola. De onde vínhamos ficávamos três meses sem aula no inverno, e precisávamos da queima de carvão para não tremer de frio”, acrescenta Maria.
Entre as gerações mais jovens da comunidade ucraniana no Brasil, a escalada da tensão no longínquo país também produz seus ecos. O professor André Zakalungem, de 26 anos, que mora em Prudentópolis, na região centro-sul do estado do Paraná (região Sul brasileira), diz que há correntes de oração e que uma passeata foi realizada até a principal praça da cidade com bandeiras da Ucrânia em apoio ao fim pacífico do conflito. “Muita gente que se considerava ucraniana só na hora dos festejos está mobilizada agora e acompanhando com atenção a crise atual”, acrescenta.
Integrante do grupo folclórico ucraniano-brasileiro Vesselka (remonta a arco-íris em português), ele diz ter viajado à Ucrânia em 2007 e 2009 e encontrado um território “dividido” em três subgrupos: um nascido na época do socialismo, outro na transição do início da década de 1990 e um terceiro já na era do capitalismo. Ele usa ainda uma comparação com o Brasil para tentar explicar a disputa pela região da Crimeia, cujos habitantes falam russo em sua maioria. “É como o se roubassem o (estado do) Rio Grande do Sul e os gaúchos decidissem se anexar ao Uruguai”, diz.
“As revoluções e os protestos são importantes, mas a chacina que ocorreu sempre precisa ser condenada”, completa, sem deixar ainda de lembrar um episódio durante as suas viagens e que mostra como é singular a relação entre os ucranianos e os russos. “Quando voamos da Ucrânia para a Rússia o voo era doméstico em seu destino. O mesmo não ocorria, por exemplo, da Polônia para Moscou.”
Formação da comunidade
Ludmila, Maria e André são apenas três exemplos entre os cerca de meio milhão de ucranianos e descendentes no Brasil. A comunidade começou a se formar no país no fim do século 19, tendo como destino principal o trabalho nas lavouras. O fluxo migratório foi acentuado no período das duas grandes guerras mundiais (1914-18 e 1939-45) e nos anos imediatamente anteriores ou subsequentes aos conflitos. O Brasil era visto como um território de imensas oportunidades, e o país incentivava a imigração pela mão de obra nas lavouras e a ocupação de terras para fins agrários.
A maior parte da comunidade se encontra no estado do Paraná. A população da já citada Prudentópolis, por exemplo, é 75% formada por habitantes de origem ucraniana, ou 38.000 de um universo de cerca de 50.000 pessoas.
Um dos momentos de grande solidariedade entre a comunidade no Brasil ocorre durante a Páscoa. A artista plástica Ludmila, por exemplo, já cuida dos preparativos da pêssanka (provém do verbo escrever, em ucraniano), os ovos pintados à mão e que fazem parte do ritual da Ressurreição, mantendo uma das tradições mais importantes de sua terra natal, e cujo início, segundo historiadores, remonta a 6.000 anos.
As figuras pintadas podem simbolizar cristianismo, paz, fertilidade, fortuna e imortalidade, entre outros significados. Neste ano, os pensamentos se voltam como nunca à harmonia na terra natal. “Que o conflito termine em paz, sem uma guerra e com um governo justo para a Ucrânia. E que (o presidente russo, Vladimir) Putin pense que a Ucrânia não pertence mais ao império soviético ou a Moscou”, conclui Ludmila.
E-mails de alistamento
A embaixada da Ucrânia no Brasil diz ao EL PAÍS por e-mail que não houve aumento significativo da procura pelos seus serviços desde o início do conflito. Mas que tem recebido e-mails de “pessoas que manifestam seu desejo de fazer parte do Exército ucraniano”.
De acordo com o embaixador Rostyslav Tronenko, Kiev apelou ao governo brasileiro e ao Brasil, como parceiro estratégico e membro da ONU, para que o país se junte aos esforços internacionais para “apoiar a independência, soberania e integridade territorial da Ucrânia”.
No último dia 19, o Itamaraty emitiu uma nota na qual condenava as mortes ocorridas em Kiev e afirmava que a crise política deveria ser “equacionada pelos próprios ucranianos, de forma pacífica e com base no respeito às instituições e aos direitos humanos”.