O Embaixador da Ucrânia no Brasil, Sr. Rostyslav Tronenko, foi o convidado da primeira reunião do ano de 2015 do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP. O debate foi conduzido pelo economista e cientista político Ricardo Sennes, Coordenador Geral do GACINT, com comentários de Demétrio Magnoli, doutor em Geografia Humana pela FFLCH-USP e colunista dos periódicos O Estado de S. Paulo e O Globo.
O encontro aconteceu no mês em que o presidente russo, Vladmir Putin, conduziu em seu país celebração do aniversário de um ano de anexação da península da Crimeia. Em fala assertiva, Tronenko apresentou a visão ucraniana de considerar o governo russo como agressor e violador da soberania do país vizinho.
UMA SOCIEDADE ANÁRQUICA
O Embaixador Rostyslav Tronenko procurou, em primeiro lugar, comentar a arquitetura desenvolvida no pós-II Guerra Mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Para ele, a Carta de São Francisco, documento basilar da organização, criada há setenta anos, apresenta princípios bastante abrangentes. E assegurou que, apesar dos seus fins nobres, a Carta da ONU não conseguiu evitar violações à soberania ucraniana, ameaças a sua integridade territorial e interferências em assuntos internos do país. É importante notar que essas ações foram cometidas por um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU – a Rússia –, por meio de coerção política e econômica.
Além disso, comentou que, a despeito de suas responsabilidades para a manutenção da paz e segurança junto à comunidade internacional, a Rússia também desrespeitou obrigações definidas nos acordos de Helsinki e de Budapeste.
A Conferência de Helsinki, de 1975, visou a certificar as fronteiras na Europa do Leste e Central. Já o Memorando de Budapeste, de 1994, está ligado à adesão da Ucrânia ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), buscando estabelecer garantias de segurança contra ameaças ou uso
da força contra a integridade territorial ou independência política da Ucrânia. Vale ressaltar que, naquele momento, a Ucrânia era detentora do terceiro maior arsenal de armas nucleares do mundo. Esse contingente de armas nucleares adveio da repartição do arsenal soviético à época do desmantelamento da União Soviética.
Assim, com a esperada garantia de proteção por parte dos membros do Conselho de Segurança e pressão por parte da Rússia, a Ucrânia aceitou abrir mão do poder nuclear e consentir com a permanência da frota da russa no Mar Negro. No entanto, os compromissos assumidos em diferentes épocas não foram traduzidos em respostas imediatas, com a aplicação de normas e instrumentos que inibissem as ações perpetradas pela Rússia a partir do início de 2014.
Rostyslav ressaltou que a confiança na ordem mundial vigente pode ser restaurada, desde que atendidos três pontos que julga primordiais. Reconhecendo a ONU como um ator chave na manutenção da paz e da segurança internacional, deve-se, em primeiro lugar, empreender esforços para que os objetivos dispostos na Carta de São Francisco sejam respeitados; em segundo, estabelecer mecanismos para inibir violações e, por fim, assegurar que os Estados violadores sejam levados à justiça.
QUEBRA DO PACTA SUNT SERVANDA?
O Pacta Sunt Servanda é um termo em latim para designar norma do Direito Internacional Público presente na Convenção de Viena dos Direitos dos Tratados, de 1969. Segundo essa norma, os tratados devem ser interpretados de boa-fé pelas partes.
Para o Embaixador, a Rússia age de má fé, uma vez que o crescente militarismo e expansionismo russo têm se baseado em chantagem nuclear, a qual Tronenko comparou à situação de Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962.
O Estado agressor, termo estipulado pelo Parlamento ucraniano em referência à Rússia, também ignora os recentes Protocolos de Minsk (I e II). Esses Protocolos, patrocinados em setembro de 2014 pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), fracassaram ao tentar implementar um cessar-fogo imediato na região leste da Ucrânia.
Na realidade, as ofensivas por parte da Rússia e de seus aliados continuaram, com ataques e ameaças a cidades e aldeias ucranianas situadas majoritariamente no corredor terrestre entre a Crimeia e a fronteira russa. Mercenários e dirigentes russos são responsabilizados pelo bloqueio da missão europeia que deveria acompanhar a retirada de armas pesadas da região.
A possibilidade de transferência das armas nucleares para a Crimeia existe, segundo as declarações do chanceler russo. Dessa forma, o Sr. Embaixador afirmou que o apoio de terroristas e forças regulares russas está transformando o lado oriental da Ucrânia em campo de guerra. De acordo com dados
divulgados no mês de março deste ano pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, o conflito já provocou a morte de mais de seis mil pessoas, além de relatos de tortura e de outras violações dos direitos humanos e humanitários.
Nesse sentido, o Estado ucraniano reforça seus pedidos de ajuda junto à ONU para que esse comportamento agressor seja inibido. Como exemplo, Tronenko mencionou ser necessária uma iniciativa nos moldes de uma operação de manutenção da paz junto às Nações Unidas, como instrumento indispensável para a implementação dos Protocolos de Minsk.
Reiterou, por fim, que tudo o que a Ucrânia deseja é a paz, a integridade territorial e a independência, ao passo que Putin, na visão do Embaixador, deseja continuar o conflito para manter a sua capacidade de manipulação da Ucrânia, uma vez que o pior pesadelo para o governo Russo é uma Ucrânia europeia, democrática e com sucesso econômico, comentou. O governo russo aproveita-se, ademais, da dependência ucraniana e europeia do gás russo, que ainda é significativa, apesar dos esforços no sentido de diminuir essa dependência.
CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE
De acordo com o professor Demétrio Magnoli, os acordos de cessar-fogo de Minsk dão margem a interpretações dúbias. Segundo o acordo, caberia à agência europeia monitorar uma zona tampão entre a Rússia e a Ucrânia. Deveriam, ademais, ser removidos todos os grupos militantes ilegais do leste da Ucrânia. O acordo, porém, não especifica quais são esses grupos. Enquanto os russos alegam tratar-se de ucranianos separatistas, a maior parte da sociedade internacional entende que são forças russas atuando na região.
O acordo diz, também, que deveriam ser promovidas eleições locais, segundo leis ucranianas. Os separatistas, entretanto, promoveram eleições no leste da Ucrânia e instalaram uma administração que eles e o parlamento russo consideram legítimas – algo que não foi reconhecido pela comunidade internacional. Os acordos de Minsk, além disso, determinam que o governo ucraniano deve promover a recuperação econômica do leste do país.
Na prática, esse conjunto de impasses significa que os acordos de Minsk não solucionam a questão do conflito na Ucrânia. Para Magnoli, eles produzem uma espécie de “conflito congelado”, que pode ser reativado a qualquer momento. Ao manter a situação da Ucrânia “congelada”, o governo russo lograria manter a região, simultaneamente, afastada da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). É necessário lembrar que os protestos populares no país advieram de uma situação na qual o governo ucraniano decidiu por uma aproximação à Rússia, em detrimento da UE, algo contrário aos interesses da maior parte do povo ucraniano.
Existe uma profundidade histórica nessa discussão: na época da Rússia de Boris Yeltsin, o Ocidente teve a oportunidade de tentar integrar esse país ao sistema europeu. Porém, decidiu-se por uma expansão da OTAN rumo ao leste, completada entre 2009 e 2011, com a integração dos países do leste. Essa expansão significou uma quebra de compromissos firmados pelos EUA com Gorbachev. O momento atual seria um desdobramento do alijamento da Rússia em relação ao sistema europeu. O que o governo russo faz, hoje, é definir uma esfera de influência, dentro da qual se encontra a Ucrânia.
O professor apontou, ainda, para determinados aspectos da política externa brasileira diante dessa questão. Na última década, o Itamaraty bastante insistiu no discurso da autodeterminação dos povos, princípio constante, inclusive, da Constituição Brasileira de 1988, em seu Art. nº 4. Contudo, com relação à anexação da Crimeia, o Brasil ainda não se manifestou a respeito das ações russas em território ucraniano. Para Magnoli, o silêncio só poderia ser entendido como uma adesão ao discurso russo.
O texto completo: http://www.iri.usp.br/documentos/Debates_Gacint30.pdf