Com investimento do governo, incentivo para jovens e boa estrutura, país do Leste Europeu consegue histórico 3º lugar no quadro de medalhas da Paralimpíada de 2016.
Foram 117 medalhas conquistadas, sendo 41 de ouro, 37 de prata e 39 de bronze, e o inédito terceiro lugar no quadro de medalhas dos Jogos Paralímpicos do Rio, a melhor atuação do país na história do evento. Mas por que a Ucrânia é uma potência paralímpica, se tem desempenho bem inferior em Olimpíadas? Qual a receita? Apoio e investimento do governo, um programa que incentiva os deficientes a praticarem esportes em todas as regiões e um centro de treinamento com ótima estrutura, que serviu de inspiração para o Brasil, mas foi perdido para a Rússia na guerra. E ligado a todos esses fatores está Valeriy Sushkevych, fundador e presidente do Comitê Paralímpico Ucraniano, grande responsável pelo trabalho que fez esta ex-república soviética saltar de apenas sete medalhas ganhas em Atlanta 1996 para o sucesso no Rio de Janeiro vinte anos depois.
Hoje com 62 anos, Valeriy teve paralisia infantil (poliomielite) e passou quase a vida toda em um cadeira de rodas, mas perseguiu o seu sonho de ser um campeão na natação, mesmo com o preconceito que enfrentou na antiga União Soviética por ser deficiente físico. Uma vez, ao chegar para nadar, ouviu do diretor do clube: "Você tem que ir para um hospital, não para a piscina. Vá embora, por favor". Depois da independência da Ucrânia em 1991, o ex-nadador se dedicou ao esporte paralímpico, atualmente é um político com influências, membro do parlamento, e ajudou a transformar vidas, criando o programa chamado Invasport. O projeto incentiva crianças e jovens com deficiência a conhecerem diversas modalidades, sem pagarem nada por isso, em escolas, clubes e centros de reabilitação espalhados por todas as regiões do país. O primeiro desses centros foi inaugurado em 1993 na capital Kiev. Neste sistema, quem se destacar, recebe o apoio financeiro do governo, que investe no talento daquele atleta.
- Os fatores para o sucesso da Ucrânia são um investimento governamental muito grande, o centro de treinamento, que eles saíram na frente. Eles têm uma liderança muito forte, o presidente do Comitê Ucraniano é alguém muito importante dentro do país, ele é um senador, um congressista. E eles têm uma massa de pessoas com deficiência muito grande. Então você junta, dinheiro, estrutura e um grande número de pessoas que querem se tornar atletas paralímpicos, é uma receita muito boa - explicou Andrew Parsons, presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB).
Com 172 atletas na Rio 2016, a sexta participação da Ucrânia em Paralimpíadas, o país conseguiu a terceira colocação geral pela primeira vez, com o recorde de 117 medalhas, destaque para a natação, ficando atrás apenas de China e Grã-Bretanha, à frente dos Estados Unidos. Uma evolução significativa em relação ao 44º lugar na estreia em Atlanta 1996 (7 medalhas). O país do Leste Europeu ainda ficou em 35º em Sydney 2000 (37 medalhas), sexto em Atenas 2004 (55), e quarto em Pequim 2008 (74) e Londres 2012 (84).
- A Ucrânia é muito organizada quanto aos esportes paralímpicos. Felizmente somos um país que dá valor ao esporte para deficientes, temos um centro de treinamento de alto nível e a consequência disso é o bom desempenho no quadro de medalhas. O que aconteceu nessa Paralimpíada foi o reflexo de um trabalho muito bem feito ao longo dos últimos quatro anos - disse Taras Dutko, craque da seleção ucraniana de futebol de 7, que levou a medalha de ouro no Rio.
Desempenho da Ucrânia em Paralimpíadas:
Ano ouro prata bronze total colocação
1996 1 4 2 7 44º
2000 3 20 14 37 35º
2004 24 12 19 55 6º
2008 24 18 32 74 4º
2012 32 24 28 84 4º
2016 41 37 39 117 3º
INSPIRAÇÃO DO BRASIL
Inaugurado em maio deste ano em São Paulo, centro de treinamento paralímpico brasileiro, um local de 95 mil metros quadrados que abriga atletas de 15 modalidades, foi inspirado no modelo ucraniano. O CT da Ucrânia existe desde 2004, na cidade de Yevpatoria, na Crimeia, na costa do Mar Negro, e é uma referência mundial.
- O centro de treinamento da Ucrânia é lendário dentro do esporte paralímpico mundial, foi uma das inspirações que a gente buscou. Ele foi o primeiro a ser um centro multimodalidade específico paralímpico. A lenda diz que os chineses foram lá, pesquisaram, tiraram fotos, mapearam tudo, foram para Pequim e fizeram um igual ou melhor. Ou seja, eles são referência para todo mundo, até para a China que é o país número um, e para a gente não foi diferente. É um grande conceito, quem olhar o nosso CT de São Paulo e o CT deles, vai ver muita semelhança de conceito - disse o presidente do CPB.
CT PERDIDO NA GUERRA
No entanto, a principal instalação esportiva paralímpica da Ucrânia foi perdida na guerra com a Rússia. Com na invasão dos russos, que tomaram a região da Crimeia em 2014, os ucranianos estão há dois anos sem poderem usar o centro de treinamento, um dos principais trunfos do país no esporte. Com isso, na reta final da preparação para a Rio 2016, os atletas tiveram que buscar outras alternativas para treinar, foram a centros menores em outras cidades do país, muitos com estrutura antiga mantidos desde a época da URSS.
A guerra civil no Leste da Ucrânia é um assunto praticamente proibido na delegação do país na Paralimpíada. Questionados pelo Globoesporte.com sobre a situação depois da perda do CT, alguns atletas se recusaram a responder, outros desviaram o foco e fugiram das perguntas.
- Nós não temos mais esse centro de treinamento, então não sabemos sobre as condições lá - disse Oksana Boturchuk, tão rápida na resposta como correu para conquistar duas medalhas de prata no atletismo, nas provas dos 200m e 400m classe T12.
Sem o centro de treinamento modelo da Crimeia, os ucranianos já trabalham e buscam investimentos para reformar e ampliar um outro CT, em Yavoriv, perto de Lviv, local que inicialmente foi construído para os esportes de inverno, mas agora deve ser adaptado para receber também os atletas de verão.
- Estamos acompanhando a população. Temos conversado com Valeriy, e eu disse a ele que seus atletas não estão indo nada mal mesmo sem o CT, e ele concordou. Mas ele falou que todos os bronzes, se tivessem o CT, seriam de ouro. Talvez sim, talvez não. Eles estão buscando apoio para construir um novo centro. O centro da Crimeia não era usado só pelos atletas paralímpicos, mas para a evolução do esporte e centro de reabilitação para milhares de pessoas. É algo que o Valeriy sentiu muito, porque muitos soldados que voltaram com lesões e deficiências passaram por reabilitação lá - afirmou o presidente do Comitê Paralímpico Internacional (IPC), Phillip Craven.
3º NA PARALIMPÍADA X 31º NA OLIMPÍADA
Enquanto demonstra impressionante evolução em Jogos Paralímpicos, a Ucrânia apresenta queda em Olimpíadas. O cenário é completamente diferente. Nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro no mês passado, os ucranianos tiveram pior campanha da história do país no evento, ficando apenas em 31º lugar, com 11 medalhas, sendo duas de ouro, cinco de prata e quatro de bronze. O melhor desempenho foi justamente na primeira participação após a independência da União Soviética, em Atlanta 1996, quando a Ucrânia ficou na nona colocação geral, com 23 medalhas, sendo nove ouros, duas pratas e 12 bronzes.
- Alguns países que estão competindo aqui têm sistemas fantásticos para o esporte paralímpico. Eu acho que a Ucrânia é um exemplo. A Ucrânia ficou em 31º lugar no quadro de medalhas da Olimpíada e está perto do topo na Paralimpíada. Existem várias escolas em cada região da Ucrânia, que atendem bem os atletas deficientes e iniciam eles no esporte - disse Craig Spence, diretor de comunicação do Comitê Paralímpico Internacional, em entrevista coletiva.
Os atletas paralímpicos ucranianos preferiram não fazer comparações entre os resultados nos dois eventos, mas deixaram claro o incentivo, apoio e estrutura que sempre tiveram no país.
- Todo mundo treina e se prepara para as competições no mesmo nível, trabalhamos duro para mostrar o nosso melhor, e nós estamos vendo o que está acontecendo com os resultados. Eu sempre tive boa estrutura para os treinamentos - contou o experiente Oleksandr Doroshenko, dono de três medalhas em Atenas 2004 no atletismo, no lançamento de dardo, de disco e no arremesso de peso.
*colaboraram Flávio Dilascio, Fabrício Marques, Helena Rebello e Matheus Tibúrcio.