Entrevista com primeiro vice-presidente da sociedade aeroespacial Eduard Kuznietsov concedida à Agência de informação "Space-Inform"
23 de junho de 2015, www.space.com.ua
Do nosso arquivo Eduard Ivanovitch Kuznietsov – primeiro vice-presidente da Sociedade Aeroespacial da Ucrânia (desde 2002). Entre os anos de 1995-2010, foi Vice Diretor Geral da Agência Nacional Espacial da Ucrânia, veterano do setor espacial, trabalhador de destaque no setor industrial, laureado com o prêmio estatal no segmento de ciência e tecnologia.
- Sr. Kuznietsov, como é do nosso conhecimento, o Senhor foi um dos iniciadores do projeto Alcantara Cyclone Space. Como o Senhor avalia a situação atual do projeto?
- Realmente, eu integrei o grupo de trabalho que preparou a visita do Presidente da Ucrânia Leonid Kuchma ao Brasil em 1995. Nesse período eu atuava como Vice Diretor Geral da Agência Nacional Espacial da Ucrânia.
Ao prever possíveis cenários de desenvolvimento do setor espacial e de lançadores na Ucrânia e possíveis alterações nas relações entre os países em um mundo global, nós chegamos à conclusão de que seria necessária a construção de um centro para o lançamento independente de foguetes ucranianos em um país que tenha ambições no setor espacial e capacidade econômica de realizar um projeto de tamanho prestígio em um período tão curto de tempo.
O Brasil possui condições geográficas extremamente vantajosas para isso. O Centro de Lançamento de Alcântara está localizado nas proximidades da linha do equador, e as possibilidades do Brasil naquele momento, relacionadas à tecnologia espacial e de lançadores, eram modestas, já o desejo de fazer parte do clube dos países espaciais era grande.
Isso é compreensível. No mundo moderno, uma nação que não desenvolve sua ciência e indústria com tecnologias de ponta não tem futuro. No caso, a Ucrânia tem um potencial de recursos humanos, científico e industrial muito forte no setor espacial e de lançadores. Dezenas de lançadores projetados e fabricados por escritórios de projeto e fábricas ucranianas foram lançados de Baikonur, Plesetsk e Kapustin Yar.
A ideia de criação de um projeto global de construção de um centro de lançamento para um novo veículo lançador moderno, o Cyclone-4, foi discutida no mais alto nível, foi conciliada pelos presidentes da Ucrânia e do Brasil, e como resultado disso tivemos a assinatura do Tratado de Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo lançador Cyclone-4 no Centro de Lançamento de Alcântara.
Iniciou-se um período de um conhecimento profissional aprofundado dos especialistas. Nesse período todas as realizações da União Soviética na área espacial estavam associadas à Rússia e poucos sabiam que cerca de um terço de todo o potencial do setor espacial da União Soviética estava concentrado na Ucrânia. A maioria dos construtores chefes de tecnologias espaciais e de lançadores era oriunda do nosso país. Sergey Koroliov, Mikhail Yangel, Vladimir Chelomei, Valentin Glushko e outros. A Ucrânia teve um papel relevante na criação do escudo antimísseis da União Soviética.
Ainda hoje na Federação Russa estão na ativa mísseis estratégicos desenvolvidos na Ucrânia.
Os diplomatas dos dois países tiveram um papel importante no estabelecimento do ambicioso projeto brasileiro-ucraniano.
- E quando foram iniciados concretamente os trabalhos relacionados ao projeto?
- A estrutura do projeto é composta por três partes: desenvolvimento e organização da fabricação do veículo lançador (financiado completamente pela Ucrânia), criação da infraestrutura geral do centro de lançamento de Alcântara (financiado completamente pelo Brasil) e a criação e operação do Sítio de lançamento (para isso foi criada a empresa binacional Alcantara Cyclone Space – ACS, financiada paritariamente). Cabe ressaltar que a ACS só foi criada em 2007.
A Ucrânia designou para a essa empresa engenheiros qualificados, gerentes, especialistas da estrutura central da Agência Nacional Espacial da Ucrânia, da Yuzhnoye e da fábrica Yuzhmash.
No geral, esses projetos são custosos, exigem muito tempo e apoio dos mais elevados níveis do governo. A construção do centro para o lançador russo Soyuz em Kourou (Guiana Francesa) foi financiada pela Agência Espacial Européia e concluída com êxito. O projeto entre Rússia e Cazaquistão para a criação do lançador Bayterek, financiado pelo governo do Cazaquistão, acabou não realizado.
A criação do lançador Angara na Rússia, a propósito, o primeiro sem a cooperação da Ucrânia, se estendeu por 20 anos.
- Qual o motivo do atraso na construção do complexo de lançamento?
- Há vários motivos. Primeiramente, a burocracia no Brasil para a obtenção de autorizações, licenças e certificados. No caso, mais de um ano e meio foi gasto para a obtenção da licença de construção. Eu já mencionei acima o longo período para a criação da ACS, criada 4 anos após a assinatura do Tratado entre os países.
Em segundo lugar, tivemos mudanças no local de assentamento do complexo. Isso ocorreu após os especialistas terem definido do local e terem sido realizados os trabalhos geológicos necessários. Uma decisão administrativa foi tomada para a transferência do sítio para um novo local de Alcântara. Tudo isso implica em tempo e dinheiro.
Em terceiro lugar, nós tínhamos um acordo de que o complexo seria projetado pela empresa russa KBTM, que possui uma vasta experiência na realização de trabalhos dessa natureza. De repente, essa firma se recusou a participar em um projeto financeiramente vantajoso.
Eu considero que cada projeto espacial é um patrimônio da nossa civilização. Infelizmente, decisões políticas de líderes de alguns países por vezes prejudicam os planos de pesquisa e exploração do espaço para o benefício da humanidade. Fomos obrigados a incumbir desse trabalho uma empresa ucraniana que, em um curto período de tempo, fez todos os cálculos necessários e os trabalhos de projeto. Pela primeira vez foi aplicada uma abordagem inovadora, o assim chamado "lançamento seco". Todas as operações tecnológicas de criação do complexo no Brasil são testadas na Ucrânia, em Dnepropetrovsk.
- Houve problemas com o financiamento do projeto da Parte ucraniana?
- O financiamento de projetos desse tipo nunca é fácil. Entretanto, pela parte ucraniana, até onde eu sei, não houve atrasos. O andamento dos trabalhos foi impactado significativamente pelo financiamento das obras de infraestrutura geral, de responsabilidade da Parte brasileira que, de fato, sequer foram iniciadas. Muitas vezes, recursos financeiros foram destinados a outras finalidades no país.
Vale salientar que os trabalhos financiados pela Ucrânia, mais precisamente, a criação do veículo lançador, já estão praticamente concluídos, e o foguete para o primeiro vôo estará pronto para ser entregue no centro de lançamento até o final do ano corrente. Por sua vez, no final de 2013, o Brasil praticamente interrompeu o financiamento destinado à empresa Alcantara Cyclone Space, o que fez com que a Ucrânia reduzisse suas integralizações por conta da indefinição, pela parte brasileira, referente ao destino do projeto.
- É do conhecimento de todos que muitos especialistas brasileiros visitaram a Ucrânia e as empresas do setor espacial da Ucrânia. Qual foi a impressão deles sobre o setor espacial do nosso país?
- Sim, tanto especialistas, quanto diplomatas do Brasil estiveram inúmeras vezes na Yuzhnoye e na fábrica da Yuzhmash. Possivelmente, para saber sobre as impressões deles seria melhor perguntar a eles. Eu só posso afirmar que antigamente e hoje a Ucrânia tem participado com sucesso de projetos internacionais relacionados à criação de lançadores, tais como Sea Launch, Land Launch em cooperação com os Estados Unidos, Noruega e Rússia, Dnepr em parceria com a Rússia, Antares em parceria com os Estados Unidos, Vega com a União Européia.
Lembro que, em 2006, pela quantidade de vôos por parte de lançadores criados com a nossa participação e que saíram dos portões da Yuzhmash, a Ucrânia ocupava o terceiro lugar no mercado mundial de lançamentos comerciais. Alguns itens de tecnologia de nossos cientistas, construtores e engenheiros permanecem sendo únicas.
- No Brasil corre a informação de que devido à situação econômica da Ucrânia, a participação do país no projeto se torna mais difícil. Há dúvidas quanto à capacidade da Ucrânia de realizar um projeto espacial moderno.
- Eu acredito que tais ideias estão sendo propagadas por um punhado de burocratas no Brasil. Os especialistas têm outra visão. Os trabalhos de criação do veículo lançador Cyclone-4 estão praticamente concluídos. Uma parte significativa dos equipamentos tecnológicos já foi fabricada, porém sem ter lugar para ser entregue devido a não conclusão das obras no centro de lançamento para recebê-los. Alguns números podem testemunhar sobre o nosso potencial: ao longo dos quase 24 anos de independência, os lançadores de produção nacional foram lançados mais de 140 vezes carregando 300 satélites com pedidos de 25 países do mundo.
29 satélites de produção nacional foram lançados a orbita. Em minha opinião, esses números são bastante convincentes. Isso sem falar dos sistemas de controle para os lançadores Soyuz, Proton, sistema de acoplamento Kurs e outros.
Sobre o novo lançador Cyclone-4, fabricado para ser utilizado em condições tropicais de calor e umidade, possuímos um sistema de controle digital moderno, foi aprovado em testes um novo sistema de navegação embarcado com base em giroscópios a laser; o último estágio desse lançador possui um sistema de múltiplos acionamentos; o volume da coifa foi expandido e muitas outras inovações foram realizadas.
Nós somos profissionais na criação da tecnologia espacial e de lançadores, e acreditamos que para os brasileiros seria interessante ouvir nossa opinião e confiar mais nos nossos especialistas.
- Qual é o futuro desse projeto, visto que o Brasil quer interromper sua participação?
- Eu não ouvi uma manifestação oficial de recusa por parte do Brasil em continuar a participar do projeto. Além disso, no Tratado está prevista a denúncia por escrito para o encerramento da parceria. De qualquer forma, a saída da Parte brasileira do projeto será um erro estratégico. Esse passo irá frear e retardar o desenvolvimento do Brasil como nação espacial em no mínimo 8-10 anos.
É preciso lembrar que no século ХХІ, no grupo dos países desenvolvidos estarão aqueles países com tecnologia espacial, capazes de criar e operar os respectivos equipamentos. O Brasil está a um passo de realizar isso e seria uma grande pena perder essa chance.
Traço aqui um exemplo histórico interessante e bem ilustrativo. A República Popular da China, em meados dos anos 1950 tomou a decisão de desenvolver a ciência e tecnologia espacial no país. Em1956 formou-se o primeiro programa espacial, em 1957 por decisão do governo da União Soviética foi concedido à China o direito de fabricação do lançador Р-2, que, naquele momento, era fabricado na Ucrânia, em Dnepropetrovsk. Em 1958 foi construído o centro de lançamento, e, em 1960, foi lançado o foguete chamado de Dongfeng (vento oriental). Esse projeto foi realizado em quatro anos.
Esse ritmo de trabalhos mostra o entendimento do governo sobre a importância do desenvolvimento da tecnologia espacial e de foguetes. Eu considero que esse é um exemplo digno.
No mundo há uma forte concorrência no mercado de serviços de lançamento, e sentimos constante pressão por parte dos nossos concorrentes por meio de lobistas com seus interesses, e discriminação quanto aos nossos feitos. Durante a realização do projeto com o Brasil identificamos, além dos aliados e parceiros, nossos opositores. Eu posso apenas pressupor o motivo pelo qual houve essa freada no projeto, por qual motivo o presidente da Agência Espacial Brasileira fugiu do encontro com o Presidente da Agência Estatal Espacial da Ucrânia durante sua última visita ao Brasil.
Faz-se necessário encerrar um acordo de parceria com o nosso país com a intenção de firmar acordo semelhante com outros países? Segundo a agência de notícias Reuters, o Brasil está à procura de novo parceiro, inclusive para o Centro de Lançamento de Alcântara. Entre os possíveis parceiros foi mencionada a Rússia. A Rússia, por sua vez, nos próximos anos estará ocupada com a construção do seu próprio centro de lançamento Vostóchnyi e com os trabalhos até a operação segura do novo veículo lançador Angara. Terá a Rússia condições para realizar ainda outros novos projetos espaciais? Eu tenho minhas dúvidas.
Além disso, diferentemente da Ucrânia, a Rússia, assim como os Estados Unidos, a União Européia, a China e Índia, possuem uma grande demanda de serviços de lançamento no âmbito de seus próprios programas espaciais, bem como próprios centros de lançamento. Estariam eles realmente interessados em compartilhar sua tecnologia com o Brasil ou ajudar no desenvolvimento de seu potencial de lançamento? Pergunta retórica.
A propósito, nós, há um tempo, propusemos a participação dos Estados Unidos ou do Canadá no projeto. Naquele momento nossas propostas não foram ouvidas. A realização desse projeto sem a Ucrânia será um erro fatal. O Brasil perderá dinheiro, tempo e não sabemos qual será o resultado.
No nosso mundo de mudanças globais é necessário tomar decisões com menos emoção, mas ser pragmáticos e não permitir erros em nossas ações.
- O que o senhor pensa sobre o papel e posição da atividade espacial no progresso científico da humanidade?
- Essa pergunta teria que ser respondida em outra entrevista, mas, em linhas gerais, posso dizer:
1) Cada vez mais e mais países estão se unindo às pesquisas cientificas e desenvolvimento da tecnologia espacial. Durante os quase 60 anos da era espacial, dezenas de países chegaram a deter tecnologias espaciais, no mundo operam mais de 20 centros de lançamento, anualmente são lançados ao espaço cerca de 100 lançadores com satélites de diferentes finalidades. Tudo isso mostra o frenético desenvolvimento da nossa civilização, o progresso técnico-científico, e caracteriza uma preparação para vôos espaciais mais distantes no futuro. A tecnologia espacial é o ápice entre as realizações tecnológicas de um país.
2) em condições de conflitos militares locais, quando os slogans políticos ofuscam o bom senso, apenas projetos espaciais de grande porte são capazes de unir diferentes países, nações e camadas da população. Hoje há exemplos disso. A estação espacial internacional é um projeto do qual participam 16 países. No futuro podem ser projetos de vôos à Lua, Marte ou a outros planetas do Sistema solar, luta contra o lixo espacial, criação de um sistema global de defesa contra asteróides para proteção da humanidade e outros.
- Obrigado pela conversa que ajudou a vermos a realização do referido projeto com o Brasil do nosso ponto de vista.
- Agradeço pela oportunidade de manifestar minhas ideias e assegurar que nem tudo está perdido. Com a vontade dos dois países esse importante projeto será concluído com sucesso e o veículo lançador Cyclone-4 poderá ser lançado desde o Centro de Lançamento de Alcântara em um futuro próximo.
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